
Tínhamos planejado com certo cuidado fazer essa primeira etapa do já famoso Caminho da Fé - Tambaú a Casa Branca - no dia 3 de agosto, dentro das comemorações da 82ª Festa do Desterro. Durante os dias que antecederam a caminhada, fomos adquirindo as coisas que seriam úteis para a jornada: mochilas, chapéus para proteger do sol ou da chuva, alimentos, etc. Constava da programação sairmos juntos do Santuário do Desterro, em ônibus que nos levaria até Tambaú, com partida às 5 horas de domingo. A saída seria às 6 horas, do Santuário de Nossa Senhora Aparecida, naquela cidade, após recebermos as bênçãos do Pe. Eduardo. Mas, para nós, o começo seria diferente.
O relógio de casa foi programado para despertar às 4h30, tempo suficiente para levantarmos, fazer o asseio, nos alimentar e ir até o Desterro. Mas o relógio não despertou, e acordamos às 5h15. Levantamos a toda, fizemos a higiene, e sem comer nada tomamos o carro e corremos ao Santuário. Mas, outra decepção! Os ônibus já haviam partido e o pátio da igreja estava vazio. Saímos chateados e em questão de minutos tomamos a decisão ainda insegura de irmos até Tambaú de carro. Mas o tanque do automóvel já estava quase na reserva. Pedi a Deus que multiplicasse o combustível, até chegar pelo menos a Santa Cruz das Palmeiras. Na rotatória daquela cidade, estendi um pouco à frente para abastecer. Outra surpresa: o posto só começava a funcionar às 7h00. Voltamos e entrei em Palmeiras. Agora, tinha de abastecer de qualquer jeito, pelo menos para voltar a Casa Branca, pois o carro poderia a qualquer instante parar na estrada. Achamos um posto 24 horas, abastecemos e retornamos à pista. Tomamos a direção de Tambaú. Não sabíamos de onde sairiam os peregrinos, por isso fomos até o cemitério. Os poucos romeiros que ali estavam não sabiam informar. Disseram para irmos até o Santuário, e foi o que fizemos. Lá, praticamente todos os caminhantes já haviam partido. Avistamos o Pe. Eduardo que voltava para Casa Branca, adquirimos nossos cajados e, junto a mais dois companheiros de peregrinação, Ezio e seu filho Leonardo, encetamos a caminhada tão esperada. Um novo ânimo surgiu em nosso coração. Deixei meu carro estacionado ao lado da antiga casa onde morou o Pe. Donizetti, hoje museu. Depois daria um jeito de voltar para buscá-lo.
O Caminho da Fé, cujo trajeto completo liga a cidade de Tambaú a Aparecida, no Vale do Paraíba, tem cerca de 430 km. Ao fazê-lo, o peregrino atravessa diversos municípios de São Paulo e Minas Gerais. Foi inspirado no tradicional e milenar Caminho de Santiago de Compostela, que cruza o norte da Espanha de Leste a Oeste, saindo da França até a Catedral de Santiago de Compostela, onde estão sepultados os restos mortais do santo católico, responsável por difundir o Evangelho entre os povos. Compostela significa “Campo de Estrelas” e faz alusão ao misterioso fato de uma chuva de estrelas que indicaria o lugar onde foi encontrado o corpo de São Tiago, perdido mais de 800 anos depois de sua morte. Tambaú é conhecida no Brasil inteiro como a terra onde labutou por mais de 30 anos o Pe. Donizetti Tavares de Lima. A ele são atribuídos inúmeros milagres e as famosas romarias que levaram mais de 50 mil pessoas a Tambaú na década de 50 tornaram-no conhecido em todo o País. Devoto de Nossa Senhora Aparecida, hoje ergue-se na cidade, ao lado da casa onde morou e na qual está instalado um museu com seus objetos pessoais, um majestoso Santuário dedicado à Virgem. Já a cidade de Aparecida, no Vale do Paraíba, abriga o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, uma das mais magníficas igrejas de nosso País e uma das mais imponentes do mundo.
A primeira etapa do Caminho da Fé, de Tambaú a Casa Branca, tem 34 km. O percurso, feito por trilhas, caminhos e estradas rurais, cruza diversas propriedades e não se utiliza em nenhum trecho da antiga estrada vicinal que liga os dois municípios, que possui um trecho de 17 km já asfaltados. Parte-se do Santuário de Nossa Senhora Aparecida, em Tambaú, e termina no Santuário de Nossa Senhora do Desterro, em Casa Branca. A única parada no trecho está nos primeiros 17 km, onde o caminhante encontra a primeira pousada credenciada.
As grandes dificuldades do Caminho estão nos trechos iniciais. Logo após o início existe uma subida íngreme, estreita e forrada de pedras que dificultam o caminhar. Como enfrentamos chuva nesse trecho, o que aumentou muito o frio da manhã, outro fator que dificultou foi a lama e o barro. Agregado à sola dos nossos calçados, tornava o andar penoso e lento. O peso dos tênis triplicava com o barro grudado. Eu, particularmente, senti ainda um agravante. Em função da chuva intermitente e do frio, senti meus braços e mãos congelarem e muita dor nesses membros. Comecei a ficar preocupado e usei uma pequena toalha de mão para friccioná-los na esperança de aquecer e diminuir a dor. Esse trecho inicial, que ocupa quase a metade do Caminho, é sem dúvida o mais difícil. São passagens íngremes, estreitas, muitas vezes pedregosas. Mas tudo é recompensado pela beleza da paisagem e pelo traçado da rota a ser seguida pelo caminhante. Nas idas e vindas das trilhas, surge a oportunidade de reflexão, de oração e de meditação. Pensa-se na vida de Jesus Cristo e no que Ele venceu por nós. Reflete-se na vida e nas obras dos Santos da Igreja, exemplos incontestes de serviço, entrega, abnegação e amor por Jesus e pela Virgem Maria.
As maravilhas do trecho vão se sucedendo a cada metro vencido. Os pés começam a doer, as pernas sentem as primeiras cãibras e o caminho continua a estender-se à frente, pedindo para ser vencido. Da mesma maneira, modifica-se a paisagem. Lavouras de cana por colher se sucedem. Trechos de terra nua e machucada pela recente colheita intercalam-se com nesgas da mata primitiva que dominava toda a região. Vêem-se os eucaliptos plantados em espaços quase que milimetricamente medidos, formando florestas fechadas, cujo aroma delicioso recende no ar puro da manhã, penetra nossos pulmões e dominam nosso ser. Impossível não aspirar com prazer o cheiro que impregna o ar. Depois vêm os pomares de laranja maduras, que colorem o verde que parece não ter fim. Seguem os de mexerica “morgote”. O caminho continua, sempre orientado pelas setas amarelas pintadas em árvores e pedras e, de vez em quando, pregadas nas porteiras e mourões de cercas das propriedades. Não há como se perder, não tem jeito de errar o trajeto. A cada 2 ou 4 quilômetros, uma visível placa do Caminho indica a distância entre aquele ponto e a chegada, Aparecida do Norte: 429, 422, 412, 398... Conforme diminuem os números, Casa Branca se aproxima.
Mais lavouras surgem diante dos nossos olhos: aqui, uma de soja. Ali adiante, uma de milho, mais pra frente, uma de feijão. Num trecho chuvoso e enlameado, paralelo aos trilhos do trem, estende-se uma linda plantação de trigo. Nunca tínhamos visto uma! O verde que parece um tapete some no horizonte. Tiramos fotografias, tocamos as plantas ainda novas mas todas espetadas e cheias do grão que vai virar pão. Uma das coisas mais lindas dessa jornada santa.
Passamos por açudes imensos. A riqueza da água molhando a terra que produz. Chegamos a uma lagoa aprazível, sombreada por inúmeras árvores e com vários bancos feitos de dormentes de estrada de ferro. A água cristalina, onde se pode avistar o leito repleto de plantas aquáticas, convida a molhar-se e lavar as mãos. Pequena pausa para descanso e retomada do caminho. Por todo o trecho avistam-se casas e mais casas abandonadas. Ninguém mais quer morar no campo. Telhados, janelas, portas e paredes ruem pela ação do tempo.
Quando chegamos à ponte da Gabiroba estamos exaustos. O tempo colaborou muito. Apesar da chuva e do frio, não fomos castigados pelo sol. De lá, em breve podemos avistar Casa Branca. Seguimos pela estrada cercada de canavial e chão duro. Cruzamos com uma carroça e um cachorro que tenta, desesperado, acompanhá-la. Pouco a pouco surgem os primeiros sinais da cidade no horizonte acinzentado. A cúpula da Matriz, o edifício Basilone, as torres do Santuário do Desterro e, em primeiro plano, os fundos da Estação Nova. Faltam poucos quilômetros. Estamos quase chegando. Contornamos pela estrada o canavial e passamos diante da antiga estação do Briaréu. Desativada a décadas, hoje é propriedade particular, sinal da prosperidade ferroviária da Mogiana e da primitiva linha que vinha da Estação Velha. Finalmente desembocamos no primeiro sinal de asfalto depois de iniciarmos o Caminho em Tambaú. Atravessamos o pontilhão da FEPASA e adentramos o Bairro do desterro pela Avenida Francisco Nogueira de Lima, que morre ás portas da Estação Nova. Seguimos chamando um pouco de atenção, especialmente pelo barro nas roupas, pelo ar de cansaço e pelos cajados.
A chegada às portas do Santuário do Desterro é emocionante. Conseguimos! Foram quase 9 horas de caminhada ininterruptas. Tiramos mais fotografias. Cumprimentamos as pessoas que se espalham pelo pátio diante da Igreja da Virgem. Acenamos para os conhecidos e somos recebidos pelo Padre Eduardo. Mas seguimos para o tão esperado encontro que motivou essa nossa jornada. Entramos no Santuário e prostramo-nos aos pés da bendita imagem da Sagrada Família do Desterro. Oferecemos à Virgem Maria, a São José e ao Menino Jesus todos os esforços que dispendemos na caminhada. Colocamos ali as dores nos pés, nas pernas e nos quadris. Pedimos pelas nossas famílias e por nós mesmos. Por dentro, somos inundados pela paz que vem de Deus. Nada fizemos. Quem fez por nós foi Jesus Cristo e a ele agradecemos mais essa maravilha que nos é dada: poder traçar com fé, amor e esperança o santo Caminho da Fé!
Foram muitas as lições da jornada, e uma delas é que não basta somente percorrer o Caminho. É preciso conhecer, respeitar e amar o Caminho. Só assim ele terá algum significado em nossa vida. Se não for assim, ele será somente mais um dos muitos caminhos que percorremos durante a nossa existência: vazio e sem deixar marcas.
Sérgio e Silvia Scacabarrozzi